Deslizes Monumentais e Sonhos Intranquilos
Com curadoria de Yiftah Peled e Diego Kern Lopes, a exposição englobou trabalhos dos artistas Carla Borba, Diego Kern Lopes, Geovanni Lima, Joana Zylinska, Jorge Menna Barreto, Lissa Tinôco, Marcos Martins, Nattali Mireda, Piatan Lube, Rafael Pagatini, Raquel Garbelotti, Yiftah Peled e dos grupos DISSOA e ORGANON.
Confira o vídeo registro do evento Deslizes Monumentais e Sonhos Intranquilos.
Confira o vídeo registro da performance [µg/kg] realizada por Geovanni Lima na abertura da exposição.
Deslizes Monumentais e Sonhos Intranquilos: a Estética do Antropoceno
Reprodução parcial de artigo de Yiftah Peled e Elaine de Azevedo
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A exposição “Deslizes Monumentais e Sonhos Intranquilos: a estética do Antropoceno” foi uma chamada para reflexão sobre diferentes questões transversais aos crimes socioambientais sob uma perspectiva interdisciplinar envolvendo artistas, pessoas atingidas pela mineração e especialistas das áreas das Ciências Humanas e Sociais e Artes Visuais: a irresponsabilização e a impotência diante das agressões ambientais; a ética ambiental como estética; as dimensões politicas do ativismo ambiental; o inimigo (também) somos nós.
Os projetos apresentados na exposição tratam das questões da mineração de formas variadas. Os deslizes monumentais remetem a instabilidade e ao colapso do projeto utópico moderno, expresso na crise ambiental sem precedentes que afeta principalmente países do sul, como o Brasil. O despertar dos sonhos intranquilos dialoga com a abordagem kafkiana de Gergor Samsa que acorda metamorfoseado, estranhando o que se tornou.
O evento se propôs a refletir como tais condições de instabilidade e estranhamento são transmitidas através de poéticas e ações de artistas ecopolíticos. Ao trabalhar nessa direção, os artistas rompem com a ideia de separação entre arte e política ou com a possibilidade de neutralidade no pronunciamento artístico.
Os níveis de engajamentos do público dos projetos expostos são variados. Alguns optam por uma possibilidade de relação participativa mais intensa, na forma de arte socialmente engajada que oferece uma proposta de intervir em comunidades ou grupos sociais específicos e promover debates através de um método interativo, como uma possibilidade de mover temas e problemas que pertencem a disciplinas específicas para um espaço de ambiguidade, temática discutido por Azevedo e Peled (2015). Outros artistas usam suportes mais formais como a fotografia ou o vídeo para, da mesma forma, problematizar a questão da mineração no Brasil.
Sumarizando, o objetivo do evento foi fomentar um debate epistemológico interdisciplinar com artistas sobre as perspectivas dos crimes e desastres ambientais com foco para a mineração - incluindo os possíveis cruzamentos entre arte, estética e ativismo como ferramentas para redes e intervenções radiculares. Parte-se do princípio de que a articulação coletiva de múltiplos saberes e de representatividades variadas implica em construção de poderes. Essa é uma das estratégias para superar os paradigmas da ciência legitimadora das soluções frente aos problemas que enfrentamos no Antropoceno. Em seguida, serão apresentados os projetos da exposição.
Deslizes Monumentais ...
A exposição foi realizada no dia 7 de junho de 2017, na Galeria de Arte e Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo, curada por Yiftah Peled e Diego Kern Lopes. Portanto, foi realizada antes do segundo rompimento de barragem que afetou Brumadinho em Minas Gerais em 2019. É importante lembrar que a exposição foi realizada dentro de uma universidade pública, através de colaboração entre grupos de pesquisa das áreas de Sociologia e das Artes Visuais5 e foi uma das poucas instâncias críticas exercitada pelas Artes Visuais nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo sobre o crime do Rio Doce e os impactos da mineração em geral, demostrando a nossa pouca capacidade de gerar cultura crítica frente a impunidade do setor econômico.
Durante a abertura, duas atingidas pelo desastre do Rio Doce, a mineira Sandra Vita e a capixaba Regiane Soares Rosa Lorde6 falaram sobre o processo de ativismo para manter viva a luta por indenizações das famílias e das comunidades atingidas pela lama tóxica. Na exposição foram incluídos múltiplos criados coletivamente pelos grupos de pesquisa DISSOA e ORGANON. A mostra foi composta por doze artistas cujas poéticas serão discutidas a seguir.
O trabalho “Grito Surdo”, do artista Rafael Pagatini, foi um autofalante moldado em cimento fundido e instalado sobre o chão do espaço expositivo. A obra efetuou uma tensão entre a função utilitária do objeto e a impossibilidade de ativar uma voz e as “utopias petrificadas”7 sobre o chão. O projeto remeteu a problemática da comunicação sobre questões socioambientais na mídia e levantou a questão da filtragem dos fatos ocorridos e da distorção da informação. A concentração da mídia a serviço dos interesses corporativos não permite a democratização da informação, o que acaba interferindo no já frágil processo de democratização do país. No caso dos desastres ambientais, as notícias veiculadas na mídia hegemônica levam a população a acreditar em catástrofes naturais, desconsiderando a arena social e política que envolve esse tipo de evento.
A artista Carla Borba, em seu vídeo-performance “Vestido de Pedra – Minas e Camaquã”, foi filmada dentro de uma pedreira abandonada no Rio Grande do Sul. No vídeo, a performer caminha com um vestido com grandes bolsos nos quais insere, lentamente, as pedras coletadas até que o peso e a exaustão impedem sua capacidade de mobilidade. O peso do minério gerado pela ação acumulada sobre o corpo leva ao colapso. A imobilidade reflete o paradoxo da incapacidade humana de avaliar seus limites e os perigos autogerados pela exploração desenfreada dos recursos naturais.
O vídeo de Nattali Mireda, “Disposição Interna” mostrava uma performance na qual a artista aparecia em uma pedreira colocando pedras na boca, em alusão ao pecado da gula e da ambição sem limites. Toca também na questão do limite do espaço humano em receber os efeitos da manipulação dos recursos naturais. O material é indigesto, porém a insistência em acumulá-lo no corpo remete a tragédia da incapacidade humana de controlar seus limites de consumo, revelando sua conivência com o capitalismo. Após perder o controle sobre a própria salivação, o vídeo mostrou a dificuldade da performer em retirar os minerais da boca.
As imagens de outro trabalho de Nattali Mireda com Geovanni Lima, 2016, foram frutos de uma residência dos artistas em uma pedreira em Vargem Alta, no Espírito Santo e revelavam ações de performance que evidenciavam uma relação desigual entre o ambiente colossal da mineração e a dimensão diminuída do corpo humano. O projeto sugere a condição de fragilidade frente a impunidade dos crimes ambientais relacionados a mineração. Os corpo são submetidos a posturas que destacam o peso e a materialidade do ambiente sobre o ser humano.
Em sua performance individual “μg/kg 90'”, realizada ao vivo no dia da abertura da exposição, Geovanni Lima preparou uma moqueca capixaba, prato tradicional da cultura alimentar do Espírito Santo, utilizando o peixe da espécie peroá, oriundo do Rio Doce, contaminado com altos índices de metal pesado proveniente dos rejeitos da barragem rompida em Mariana. A refeição foi preparada durante o evento e servida aos visitantes em pratos de papel, nos quais apareciam impressas o seu “valor nutricional”, ou seja a quantidade de metais pesados esperadas para os pescados da região. A performance compartilha com o comedor urbano a tragédia causada à estrutura organizacional das comunidade fluviais e seu ecossistema. Vários visitantes comeram a moqueca. Tal fato, ainda demonstra a indiferença ou a prevalência de outros desejos frente aos impactos da contaminação do Rio Doce.
O projeto de arte socialmente engajada do artista Piatan Lube foi pensando para tornar-se uma intervenção em quatro comunidades ribeirinhas do Rio Doce - Regência, Colatina, Linhares e Baixo Guandu. O projeto implicava participação do visitante e era composto de uma mandala feita com frutas. O visitante era convidado a escrever uma “Carta de amor ao Rio Doce” e recebia, em troca, uma fruta. Uma coleta de afetos foi colocada em prática e as cartas foram, posteriormente, enviadas as pessoas que vivem nas comunidades fluviais.
O projeto “Racionalidade Tóxica”, do artista Yiftah Peled, foi elaborado especificamente a partir do crime ambiental que afetou o Rio Doce. Era composto de dezenove cubos de acrílico transparente, dentro dos quais havia a lama tóxica recolhida das margens do Rio Doce. Embaixo de cada cubo, sobre um quadrado de acrílico preto, estava inscrito um número que se referia a idade de cada uma das 19 vítimas do desastre do Rio Doce. Denunciando o anonimato dessas mortes silenciadas, o trabalho remete ao paradoxo do valor da vida humana reduzida a um jogo de lucro racional. Em caso de venda, o valor de cada peça será destinado a família das vítimas.
Outro trabalho de Peled, “Arena Vale Tudo”, era composto de um objeto de acrílico na forma hexagonal de uma arena de “luta vale tudo”, cuja base tinha minério de ferro coletado no porto da empresa Vale, importante local de escoamento marítimo de minério de ferro, localizado em uma praia central da capital capixaba. A obra aborda a questão da poluição da cidade de Vitória pelo pó de minério de ferro, descarregado diariamente no porto e associa as lutas agressivas travadas nas arenas “vale tudo” aos impulsos econômicos desumanizados. A poeira tóxica que cobre Vitória causa diferentes tipos de alergias e problemas respiratórios e revela que as políticas de proteção à mineração prevalecem sobre as políticas de saúde pública, evidenciando a supremacia do neoliberalismo. Ou seja, vivemos em uma época de riscos relativamente democráticos e lucros cada vez mais privados.
Em “Blockbuster”, o mesmo artista problematiza o fato de que o estado capixaba é um grande exportador de pedras ornamentais. O projeto participativo era um ambiente apresentado no formato da “Agência de Turismo Definitivo”, composta de ganchos para pendurar roupas e um display feito com a imagem de uma pedra de granito aprendida na operação policial Blockbuster. A operação ocorreu em 2017, em Vitória, ES, quando traficantes mexicanos foram presos ao tentar exportar grandes blocos de granite dentro dos quais escondiam drogas. A imagem da pedra com os furos era colocada, como uma máscara, na altura dos olhos do visitante. Esse era convidado a tirar sua roupa e posar na frente de um fotógrafo em uma postura performática. O projeto associa três elementos: a mineração, o vício e o olhar. O participante mira do interior da pedra, colocando-se no lugar da droga e assumindo o lugar de uma sociedade dependente/ viciada no consumo.
Em “Lugares Moles”, Jorge Menna Barreto mostrou fotografias de miniaturas humanas posicionadas sobre pedaços de manteiga. O artista registrou o processo de afundamento das figuras nesse terreno mole e instável em referência a incerteza e a fragilidade do ser humano e aborda sua precariedade frente as mudanças sociais e ambientais por ele mesmo causadas.
A série “Floresta”, de Marcos Martins, mostrou o artista repousando a cabeça nos trilhos de uma estrada de ferro em Fortaleza. O artista apontou a iminência de um desastre que ameaça a vida e a integridade, revelando a fragilidade do ser humano. Em outra imagem, uma agulha foi colocada sobre os trilhos, sob a premissa de uma crença popular que Martins trouxe da sua infância: de que uma agulha poderia derrubar um trem. As ações da mineração e o inabalável poder econômico são desafiados por uma intervenção sutil. Ressaltamos que ativistas e vítimas da mineração têm utilizado os trilhos de trem - por onde escoam os produtos da mineração - como locais de mobilização e resistência para questionar a insustentabilidade dessa prática produtiva no país, uma “justiça nos trilhos”. Para Milanez et al (2010), o trem do progresso e do desenvolvimento corre pelo Brasil deixando um rastro de devastação e contradições.
Diego Kern Lopes mostrou uma instalação com vídeos denominado “Mecanismos Poéticos para Projetos Utópicos”, na qual aparece um trem carregado de minério de ferro a caminho do porto da Vale, em Vitória, cujo som estridente invade o ambiente. Ao lado, aparece outro vídeo, silencioso, filmando vítimas do desastre do Rio Doce prestando depoimentos sobre a tragédia que abalou suas vidas. O projeto apresentou uma plataforma participativa, com um dispositivo que permitia que o visitante abafasse o som do trem. Ao fazer isso, as vozes das vítimas eram ouvidas. O dispositivo testou a resistência do visitante, pois exigia certo esforço físico para ser acionado e, assim, revelar as vozes das vítimas invisibilizadas. O projeto lembra a primeira histórica projeção cinematográfica do filme dos irmãos Lumieres, 'Arrival of a Train at La Ciotat Station” (1895), na França, quando os espectadores fugiram amedrontados do local de exibição quando avistaram as imagens do trem movendo-se em sua direção. Hoje, os efeitos da poluição ambiental, sob as premissas do Antropoceno, não indicam um caminho de fuga do planeta já que o fora não existe em termos de contaminação ambiental.
O projeto “Um caso verídico: Wind Fence” da artista Raquel Garbelotti consistia na coleta diária do minério de ferro proveniente da empresa Vale que invade seu apartamento em Vitória, ES. Esse material foi distribuído na maquete do apartamento da artista e apresentado na forma de uma fotografia. As wind fences, ou barreiras de vento, são grandes estruturas metálicas com telas, instalados pela Vale S.A, no Porto de Tubarão, para, pretensamente, conter o avanço das partículas de minério de ferro sobre a cidade e os pulmões capixabas. A tecnologia é questionada em sua eficiência, uma vez que as telas não conseguem conter a fina poeira que continua a poluir a região.
Lissa Tinôco e Geovanni Lima propuseram uma performance colaborativa que foi mostrada na exposição através de registros fotográficas. A performance “Lavadeiras” carrega esse substantivo feminino em alusão a prática de lavagem de roupas pelas mulheres que viviam as margens do Rio Doce. Logo após o desastre de 2015, os componentes caminharam durante quatro horas, desde a Universidade Federal do Espírito Santo até a entrada da Empresa Vale situada no final da praia de Comburi, em Vitória, completamente cobertos por lama e carregando bacias, baldes com água e as bandeiras do Brasil, do Espírito Santo e de Minas Gerais. Em momentos estratégicos as bandeiras eram lavadas com a água suja dos utensílios. A ideia era chegar até a entrada administrativa da empresa onde, em silêncio, as bandeiras enlameadas seriam lavadas e estendidas. Tal finalização, entretanto, não aconteceu diante do forte policiamento antes da entrada da empresa, que impediu a continuidade da manifestação. A intervenção policial revelou a conivência entre o Estado e a Vale para encobrir o crime sem repercussão pública.
A artista inglesa Joana Zylinska apresentou um vídeo - Exit Man - de caráter documental que evidencia a fase antropocênica do planeta e enfatizava uma visão melancólica e pessimista sobre o futuro da humanidade. O filme, em formato de um documentário, mostrava imagens geológicas sobrepostas a ambientes eminentemente urbanos. As imagens passam a ideia da incapacidade do ser humano em lidar com as consequências das intervenções ambientais.
O grupo DISSOA produziu um múltiplo para distribuição com uma imagem de floresta, com linhas pontilhadas no formato de estilhaços de vidro impressas sobre a mesma. O trabalho aborda a fragilidade da natureza e a possibilidade de fragmentação da natureza depositada na mão humana. O ser humano aparece como interventor que detém o poder de gerar fragmentos impossíveis de serem recompostos.
O Grupo ORGANON mostrou três múltiplos impressos com frases produzidas pelos afetados pelo desastre do Rio Doce, criando uma mídia alternativa para dar voz as vítimas que foram caladas.
Sonhos Intranquilos
O projeto desafia o arranjo político hegemônico, antidemocrático, economicamente determinado e controlador que artistas/ ativistas/ ambientalistas se propõem a confrontar através da potente linguagem da arte. Em tempos de desmantelamento das universidades públicas, o evento ali realizado demonstra a importância do papel crítico e inclusivo que esse espaço de educação desempenha frente a ameaça da censura e ao desafio da inserção dessas vozes nas instituições formais de arte, muitas delas mantidas pelo mesmo complexo de poder empresarial-industrial que esse projeto desafia e evidencia. A exposição e o projeto "Deslizes Monumentais e Sonhos Intranquilos" mergulha na potência da linguagem da arte ecopolítica atravessando a fronteira das Ciências Sociais e Humanas. Esse evento redirecionou a arte para um campo expandido de organização de forma a construir um imaginário político que contribui para os clamores por justiça ambiental, utilizando novas estratégias retóricas, visuais e afetivas que complexificam as posições corporativas e estatais frente as questões ambientais.